quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Ofensividade em Direito Penal: revisitando o conceito de bem jurídico a partir da teoria do reconhecimento - Vinicius Vasconcellos


VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Ofensividade em Direito Penal: revisitando o conceito de bem jurídico a partir da teoria do reconhecimento. In Boletim IBCCRIM. Ano 19, n. 224, julho/2011. São Paulo: IBCCRIM, 2011. p. 18 e 19.

O presente artigo surge como consequência de pesquisa realizada no período de agosto de 2009 a julho de 2010 com apoio financeiro do CNPq. Aqui serão apresentados alguns dos seus resultados diretos, bem como debates que ocorreram no Grupo de Estudos e Pesquisa em Criminologia da PUC/RS, o qual é vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais dessa mesma universidade. Teremos como objetivo a realização de uma aproximação entre a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth, representante da Escola de Frankfurt, com a Teoria do Bem Jurídico-penal. Acredita-se que, desse modo, possa ser feito contributo para, ao menos, melhor elucidar as aporias do conceito de bem jurídico-penal. Portanto, pretende-se explicitar que a Teoria do Reconhecimento oferece um arcabouço teórico que permite o desenvolvimento e a fundamentação de um Direito Penal voltado à proteção de bens jurídicos, no contexto de um Estado Democrático do Direito, que, ao mesmo tempo, não ignora e, ao contrário, permite a compreensão da lógica moral dos conflitos sociais.
Analisando a evolução das relações pessoais e econômicas na sociedade e o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, podemos apontar diversos fenômenos modernos que influenciam diretamente diversas áreas de interesse coletivo. Tais acontecimentos, somados à crescente globalização de tecnologias e conhecimentos – sejam eles um avanço ou um retrocesso para a humanidade – estão trazendo à tona problemas e questionamentos fundamentais acerca do Direito, da Política e, primordialmente, da liberdade individual.
Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, praticamente sem fronteiras internacionais e restrições para a disseminação de ideias – ou ideologias. A sociedade percebe-se acuada por fatos desconhecidos, sem consequências precisas e com uma capacidade de alastramento indescritível, ou seja, riscos – como, por exemplo, mutações genéticas, transgênicos e o uso de tecnologia nuclear. Há, então, uma pressão por um controle que não se sabe ao certo o quanto deve ser rígido ou permissivo, mas que se apresenta, certamente, com tendências ao controle excessivo.
Em paralelo, podemos ressaltar outro fenômeno que estava latente na sociedade, mas que, com os atentados terroristas aos Estados Unidos em 2001, se sobrepõe às observações científicas: a concepção do direito penal do inimigo. O constante estado de pânico e medo gerado por esse incompreensível ataque a uma nação tem fundamentado políticas invasivas e inconcebíveis a um Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, os ideais de um direito penal mínimo, fundado no princípio da ultima ratio, tornam-se obstáculos a serem denegados em prol do expansionismo penal. Esta pesquisa se faz relevante diante da essencialidade de uma limitação do poder punitivo do Estado para que sejam evitadas violações de direitos individuais. Pode-se dizer, portanto, que o presente debate gira em torno do conceito de bem jurídico, mas que, na verdade, aborda divergências de conteúdo acerca de qual deve ser o alcance legítimo do Direito Penal.
Ponto chave na análise crítica do tipo penal face à Teoria do Bem Jurídico é a análise tri-dimensional de seu conteúdo. Propomos, aqui, uma escala de verificação fundada em três níveis, quais sejam, a dignidade, a necessidade e a ofensividade. Tal inquirição precisa ser realizada tanto em âmbito abstrato, pelo legislador, quanto em concreto, pelo juiz – embora esse venha a focar-se mais especificamente no último quesito, a ofensividade. Neste trabalho, enfoquemos na dignidade do bem jurídico tutelado pelo tipo em questão. É aqui que se relaciona, de modo mais direto, a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth com o conceito a ser revisitado nesta pesquisa.
Luciano Feldens defende uma íntima relação entre a Constituição e o Direito Penal, mais especificamente, o poder de criminalização garantido ao legislador ordinário. Sustenta ele que “a Constituição figura como um quadro referencial obrigatório da atividade punitiva, contendo as decisões valorativas fundamentais para a elaboração de um conceito de bem jurídico prévio à legislação penal e ao mesmo tempo obrigatório para ela”.[i] Os mandamentos constitucionais seriam, desse modo, a síntese a priori da possibilidade de criminalização de condutas, um vínculo limitador do poder de punir.
Como sustenta Paulo Vinicius Sporleder de Souza, embora sendo imprescindível uma filtragem dos bens jurídicos tendo-se em tela os ditames constitucionais, ela não basta nem é suficiente para fundamentar o princípio da dignidade penal ou do merecimento da pena.[ii] Queremos defender, portanto, que há sempre uma necessidade de legitimação social do Bem Jurídico a ser tutelado pela lei penal, ainda que continuemos a garantir a preponderância dos mandamentos constitucionais. É cristalino que há algo pré-normativo, uma noção compartilhada no nível das relações individuais.
Axel Honneth divide as relações de reconhecimento em três esferas: do amor, do direito e da estima social; passemos a analisar em detalhe a segunda delas. Com base em Thomas H. Marshall, ele defende que “um sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros da coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa forma discursiva da vontade; e a possibilidade de se referir positivamente de si mesmo desse modo é o que podemos chamar de autorrespeito”.[iii] Marshall sustenta que a busca por igualdade social, ou seja, “o nivelamento histórico das diferenças sociais de classe”,[iv] é realizada por uma constante luta por uma ampliação de direitos fundamentais, tanto em seu aspecto objetivo – ou seja, a quantidade de garantias – quanto em seu âmbito de disseminação social – a quantidade de pessoas e grupos que efetivamente possuem tais direitos reconhecidos.
Aqui podemos nutrir a ideia de que os bens jurídicos devem ser percebidos de modo semelhante, qual seja, a partir de uma análise histórica, uma perspectiva de construção social por meio de uma pressão evolutiva em busca de direitos e garantias essenciais ao convívio em sociedade e ao reconhecimento mútuo entre os indivíduos, ou seja, uma luta por igualdade. Vale, aqui, destacar as palavras de Honneth: “É importante para os nossos fins somente a demonstração de que a imposição de cada nova classe de direitos fundamentais foi sempre forçada historicamente com argumentos referidos de maneira implícita à exigência de ser membro de igual valor da coletividade política”.[v] O direito penal, em última análise, tem por objetivo limitar, mas, desse modo, garantir a liberdade das pessoas face aos outros cidadãos da sociedade. Ao restringir as condutas de cada pessoa igualmente, sem privilégios ou exceções, o poder punitivo garante a todos o reconhecimento de seu igual valor, assegurando, assim, o autorrespeito individual.



[i] FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008, p. 30.
[ii] SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem Jurídico-penal e Engenharia Genética Humana. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 142-145.
[iii] HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 197.
[iv] HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 190.
[v] HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 191.

Vinicius Gomes de Vasconcellos
Graduando em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS.
Bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq desde 2009.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Criminologia da PUC/RS.

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