quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Reflexões iniciais sobre criminal compliance - Giovani A. Saavedra

SAAVEDRA, Giovani A.. Reflexões iniciais sobre criminal compliance In Boletim IBCCRIM . São Paulo: IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 11-12, jan., 2011.


       O conceito de compliance surgiu na década de noventa, mas, apenas nos últimos anos, ele passou a ser objeto de estudos jurídicos. O instituto passou a ter relevância jurídico-penal, principalmente, com a entrada em vigor da Lei 9.613, de 03.03.1998, e da Resolução n. 2.554, de 24.09.1998, do Conselho Monetário Nacional. Desde então, as instituições financeiras e as empresas de capital aberto passaram a ter o dever de, respectivamente, colaborar com as investigações de lavagem de dinheiro (os chamados “deveres de compliance”) e de criar sistemas de controles internos que previnam as práticas de corrupção, de lavagem de dinheiro e de outras condutas que possam colocar em risco a integridade do sistema financeiro.

       Em que pese o conceito tenha surgido na década de noventa, o tema ainda não recebeu o merecido destaque no Brasil, sendo praticamente desconhecido na academia e na doutrina jurídico-penal (especialmente no âmbito da Criminologia). Mais: no âmbito empresarial, os potenciais atingidos também parecem não ter se dado conta das fortes consequências jurídico-penais desse novo instituto para o desenvolvimento de suas atividades.

       No Brasil, compliance tem sido compreendido, de um lado, apenas como parte da implementação das “boas práticas” da corporate governance. Nesse caso, compliance é entendido como um “mandamento ético”, o qual deveria melhorar o relacionamento da empresa com os stakeholders e com o mercado.(2) Por outro lado, no âmbito das Ciências Criminais, o significado desse conceito para o Direito Penal e para a Criminologia e os reflexos do seu desenvolvimento para a política criminal ainda não foram devidamente explorados. A exceção digna de nota fica por conta dos debates acerca dos chamados “deveres de compliance”, discutidos como um dos aspectos dos crimes de lavagem de dinheiro.(3) Ademais, o debate internacional sobre criminal compliance parece ser totalmente desconhecido no Brasil. Com o presente artigo, pretende-se apresentar, muito brevemente, alguns aspectos desse novo ramo de pesquisa das Ciências Criminais.(4)

       O objeto de estudo do criminal compliance confunde-se, em grande medida, com aquele do Direito Penal Econômico, e, portanto, vários autores procuram diferenciar o espectro de problemas de cada um desses ramos de pesquisa.(5) De fato, criminal compliance não significaria nada de novo se, em seu conceito, fossem subsumidos apenas os elementos que já são encontrados no debate nacional e internacional sobre Direito Penal Econômico. Por outro lado, o surgimento desse novo fenômeno parece diretamente vinculado com o surgimento de crimes econômicos e da persecução penal de empresários e instituições financeiras, pois, apenas quando os gerentes de empresas e de instituições financeiras passaram a ser investigados e processados criminalmente, surgiu também a necessidade de prevenção criminal no âmbito de suas atividades.(6)

       Portanto, a primeira característica atribuída ao termo criminal compliance é prevenção. Diferentemente do Direito Penal tradicional, que está habituado a trabalhar na análise ex post de crimes, ou seja, na análise de condutas comissivas ou omissivas que já violaram, de forma direta ou indireta, algum bem jurídico digno de tutela penal, o criminal compliancetrata o mesmo fenômeno a partir de uma análise ex ante, ou seja, de uma análise dos controles internos e das medidas que podem prevenir a persecução penal da empresa ou instituição financeira. Exatamente por isso o objetivo do criminal compliance tem sido descrito como a “diminuição ou prevenção de riscos compliance”.(7) Segundo posição dominante, as empresas de capital aberto e as instituições financeiras deveriam criar os chamados compliance officers, que teriam a responsabilidade de avaliar os riscos compliance e de criar controles internos com o objetivo de evitar ou diminuir os riscos de sua responsabilização penal.

       Por outro lado, os compliance officers têm sido criados também com o objetivo de investigar “potenciais criminosos” no âmbito de atuação da empresa. No âmbito do debate internacional, muito se tem discutido acerca dos deveres de comunicação de fatos potencialmente criminosos às autoridades competentes pelos compliance officers e de sua responsabilização penal. Recentemente, na Alemanha, por exemplo, o BGH(Bundesgerichthof) condenou um compliance officer por entender que, ao assumir a responsabilidade pela prevenção de crimes no interior da empresa, o profissional assume também uma posição de garante e, por isso, deve ser punido criminalmente por ter assumido a responsabilidade de impedir o resultado e por ter obrigação de cuidado, proteção e vigilância.(8)

       Parece, assim, que o desenvolvimento do compliance implica um paradoxo.(9) O objetivo do compliance é claro: a partir de uma série de controles internos, pretende-se prevenir a responsabilização penal. A sua concretização, porém, ao invés de diminuir as chances de responsabilização, cria as condições para que, dentro da empresa ou instituição financeira, se forme uma cadeia de responsabilização penal. Isso porque as atribuições que têm sido conferidas aos compliance officers acabam por colocá-los na posição de garantidores (respondem, portanto, como se tivessem agido positivamente nas situações em que venham a se omitir). Mais: podem ser considerados garantes também os integrantes do conselho de administração, pois, segundo doutrina majoritária, eles têm o dever de supervisão dos compliance officers. Evidencia-se, assim, que toda a administração da empresa é exposta ao risco de uma persecução criminal.

       Isso acontece, principalmente, porque o desenvolvimento do compliancetem se dado à margem do Direito Penal e da Criminologia. Exatamente por isso há um consenso no âmbito da discussão internacional acerca decompliance: a pesquisa e a implementação de compliance supõem conhecimentos jurídico-penais para o seu desenvolvimento adequado. Esse novo âmbito de pesquisa tem sido designado pela doutrina jurídico-penal internacional como criminal compliance, ou seja, o estudo dos controles internos e de outras medidas que podem ser adotadas em empresas e instituições financeiras com o fim de prevenção de crimes. Trata-se de um novo campo de pesquisa no âmbito das Ciências Criminais, que tem chamado a atenção de penalistas e criminólogos de todo o mundo e que, espera-se, também o faça no âmbito da pesquisa nacional.

NOTAS

(1) O presente artigo consiste em versão resumida da palestra proferida pelo autor no 1. Compliance Tagung. Wissenschaftliche und praktische Aspekte der nationalen und internationalen Compliance-Diskussion, realizada na Universidade de Augsburg, em 03.12.2010, intitulada Criminal Compliance aus brasilianischer Sicht. Para a elaboração do artigo, foram levadas em consideração as críticas e as sugestões feitas, na oportunidade, pelos Professores Bernd Schünemann (München), Thomas Rotsch (Augsburg), Erik E. Lehmann (Augsburg), Enrique Bacigalupo(Madrid), Dennis Bock (Würzburg) e Mark Deiters (Münster).

(2) Ver, a esse respeito: ABBI – Associação Brasileira dos Bancos Internacionais; FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos, CartilhaFunção de Compliance, agosto 2003, com atualização em julho de 2009 (Verfügbar in: www.febraban.com.br); COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance. Preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010, p. 12 e ss.; MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil. Consolidação e perspectivas. São Paulo: Saint Paul, 2008, p. 64 e ss.; ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança corporativa. Fundamentos, desenvolvimento e tendências. São Paulo: Atlas, 2009, p. 183 e ss.

(3) Ver, a esse respeito: BARBOSA, Daniel Marchionatti. Ferramentas velhas, novos problemas: deficiências da utilização da lei dos crimes contra o sistema financeiro para coibir descumprimento de deveres de compliance, inHIROSE, Tadaaqui; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo (orgs.). Curso modular de direito penal. Florianópolis: Conceito Editorial–EMAGIS, 2010, vol. 02, p. 489-510.

(4) Para um panorama sobre a discussão sobre compliance na Alemanha, ver: ROTSCH, Thomas. Criminal Compliance, in: Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik. Ausgabe 10/2010, 5. Jahrgang, S. 614; HAUSCHKA, Christoph E. Corporate Compliance. Handbuch der Haftungsvermeidung im Unternehmen. München: C.H. Beck, 2010; GÖRLING, Herlmut; INDERST, Cornelia; BANNENBERG, Britta. Compliance. Aufbau – Managment – Risikobereiche. München: C.H. Beck, 2010; e ROTSCH, Thomas. Recht – Wirtschaft – Strafe. Festschrift für Erik Samson zum 70. Geburstag. München: C.H. Beck, 2010.

(5) ROTSCH, Thomas. Criminal Compliance, in: Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik. Ausgabe 10/2010, 5. Jahrgang, p. 614 e ss.

(6) Idem, p. 616.

(7) Ver, a esse respeito: COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance. Preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010, p. 35 e ss.

(8) A decisão referida é a BGH Entscheidung von 17.7.2009-5 StR 394/08. Para um panorama sobre a discussão sobre essa decisão na Alemanha, ver a bibliografia citada na nota 4.

(9) O conceito de paradoxo é empregado aqui no sentido dado por:HARTMANN, Martin; HONNETH, Axel. Paradoxien des Kapitalismus. Ein Untersuchungsprogram, in: Berliner Debatte Initial 15 (2004) 1, S. 9.

Giovani A. Saavedra
Doutor em Direito e em Filosofia pela Johann Wolfgang Goethe - Universität Frankfurt am Main.
Professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ciências Criminais e da Comissão Científica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).

5 comentários:

Débora Almeida disse...

Excelente artigo, professor!

Anônimo disse...

Muito obrigado Debora!!!!Fico muito feliz que tenhas gostado!!! Abraços, Giovani.

Unknown disse...

Caro Giovani,
Também sou filho da PUCRS e da UFRGS, porém nas áreas ligadas à administração e Tecnologia, não ao direito.
Faz alguns anos que estou fora do amado Rio Grande, fui gestor de uma área de investigação à fraudes e hoje sou o gestor de Compliance. A empresa em que atuo possui faturamento anual superior a 50bi e está sujeita à todas as regras do mercado financeiro nacional e internacional (CVM e SEC).
Implementei controles em todos os processos da empresa que possuem valores materiais em nossa demonstração financeira, inclusive na área jurídica, sendo estes processos reavaliados anualmente conforme previsão de resultado. Utilizando para isso às melhores práticas e metodologias do mercado: COSO, COBIT, ISO31000, etc.
Temos controles detectivos, preventivos, preditivos, de monitoramento, etc. Sendo estes testados anualmente por empresas especializadas mediante avaliação objetiva das evidências de atuação do controle, cujo fechamento é a divulgação formal de parecer quanto à eficácia do ambiente de controles da companhia.
Fiquei muito preocupado com sua afirmação de exposição ao risco criminal, principalmente, face à compliance ter se dado à margem do Direito Penal e da Criminologia.
Desta forma, lhe pergunto: que controles recomenda que as empresas adotem?

Abs,
Alexandre

Anônimo disse...

Prezado Alexandre,
com certeza não há uma resposta universal, válida para todas as empresas. O sistema de controle será um se se tratar de Instituição Financeira e outro se se tratar, por exemplo, de empresa do ramo siderúrgico. As instituições financeiras tem deveres específicos de comunicação ao COAF de certas movimentações que fogem à normalidade, enquanto que a empresa do ramo siderúrgico dificilmente terá de se preocupar com esse tipo de problema. Nosso escritório tem se especializado em prestar assessoria a Compliance Officers que pretendam reavaliar seu sistema de controles internos a partir da ótica do Direito Penal. A nossa atividade não tem sido fácil, mas temos atingido bons resultados até o momento. O problema é que as soluções, normalmente, estão vinculadas às peculiaridades do caso concreto, por isso, infelizmente, não posso lhe dar uma resposta pronta que possa solucionar de forma fácil o problema. Inclusive, tendo em vista a complexidade do tema, eu estou iniciando um grupo de pesquisas sobre Compliance na PUCRS e estou convidando colegas que atuam na prática de Compliance e colegas que pesquisam academicamente o tema para fazer parte do grupo. Além disso, criei uma especialização na PUCRS sobre o assunto. Se quiseres aprofundar o tema ou quiseres participar do grupo, podes me enviar um e-mail: saavedra@srgadvogados.com .

Obrigado pelo seu comentário!
Abraços,
Giovani A. Saavedra.

Kamila disse...

Boa noite Giovani. Primeiramente parabenizo pelo excelente artigo apresentado, conteúdo de muita qualidade.
Após, gostaria de lhe pedir indicações de livros, artigos, publicações sobre o presente tema, uma vez que será o tema do meu TCC.
Novamente, parabenizo o artigo, e desde já agradeço, pois será de muita utilidade.